Texto original Jacques - Chonchol: O Chile ontem e hoje
06 outubro 2012
Entrevista de Alfredo Bosi com Jacques Chonchol, prefaciador do livro "Extensão ou Comunicação?"
Alfredo Bosi – O que levou o democrata-cristão Jacques Chonchol a escolher o caminho da esquerda a partir dos anos 60?
Jacques Chonchol – Fui membro da Democracia Cristã de 1946 a 1969. Como tantos outros jovens que se recusavam ao maniqueísmo (ou capitalismo, ou comunismo), eu acreditava na possibilidade de realizar politicamente o que Jacques Maritain chamara de humanismo integral, no fundo, uma democracia social de inspiração cristã. A leitura de Emmanuel Mounier nos levava a preconizar um estilo comunitário de vida que quebrasse as algemas do proprietismo, estritamente individual, tal como o concebeu o pensamento burguês clássico.
A influência de Lebret também foi decisiva. Quando estive pela primeira vez na França, em 1949, como bolsista do Institut Agronomique, visitei a Tourette, perto de Lyon, onde se estabelecera uma equipe de dominicanos que apoiava o movimento de Economia e Humanismo. Lebret dedicou a sua vida ao estudo dos países subdesenvolvidos. O seu pensamento social via na Economia Política um saber centrado nas necessidades do povo, e não uma especulação sobre a lógica do capital e do lucro. Uma economia que franqueasse o limiar da Ética; o que, naquele tempo, parecia a muitos um tanto ingênuo, mas que hoje se reclama e se proclama aos quatro ventos como tábua de salvação!
Essa oposição ao credo capitalista clássico nos aproximou de todos quantos desejavam (no Chile e na América Latina) destruir a hegemonia burguesa. Nossas convicções eram claras, e eu poderia resumi-las assim: não é possível resolver os problemas essenciais das populações do Terceiro Mundo no bojo de uma economia de puro lucro. Se o sistema produtivo desses países é determinado só pelo lucro (e quanto mais, melhor...), ele acabará acumulando bens supérfluos entre as camadas minoritárias mais ricas, ao passo que os recursos disponíveis, ditos excedentes, não bastarão para satisfazer às necessidades básicas (alimentação, habitação, vestuário, saúde, educação) das classes pobres que constituem a maioria. A acumulação e a sua posse restrita contribuem para o dilaceramento interno desses países nos quais se formavam grupos de privilégio incorporados ao sistema financeiro internacional. A obsessão do ganho e a democracia social opõem-se mutuamente nos países subdesenvolvidos; e a solução é implantar uma política social de desenvolvimento de longo alcance.
O essencial dessa proposta estava claramente contido nos estudos de Lebret e na prática de Economia e Humanismo – uma verdadeira escola de planejamento. Quando os democratas-cristãos dos anos 50 e 60 se convenceram dos impasses do velho capitalismo exportador da América Latina, deu-se, no âmago da cultura católica, um passo decisivo para a crítica das estruturas conservadoras mantidas pelos nossos regimes políticos. Estava aberta a possibilidade de tentar uma frente de centro-esquerda.
Faltavam-nos ainda instrumentos analíticos e conceituais mais rigorosos para entender a dinâmica do capitalismo na América Latina. Foi a CEPAL, sob o magistério de Raul Prebrisch, que nos ajudou a pensar em termos de desenvolvimento do mercado interno via industrialização. Também deriva da CEPAL a idéia de uma integração latino-americana a partir das suas regiões. Mas o valor de um mercado interno forte, diversificado e equilibrado é a aspiração máxima de um país em desenvolvimento.
AB – Quais foram os principais momentos dessa caminhada?
JC – A questão da reforma agrária foi um detonador da ruptura. O governo Frei, embora verbalmente se apresentasse sempre como um dos seus piores efeitos era o de não assegurar um quantum suficiente de alimentos básicos à população, o que obrigava o Estado a recorrer a importações, sobretudo a partir dos anos 1940-50. Quando o gasto de divisas nessas operações de compra de alimentos começou a pesar em nossa balança, então a burguesia industrial moderna e seus representantes políticos acordaram para a urgência de alterar as estruturas no campo. Isto explica o quase consenso que se formou, nas gestões de Frei e de Allende, acerca da necessidade da reforma agrária. O latifúndio estava custando muito à nação e, internamente, era um óbice à implantação de uma boa política de alimentos para o povo. Parte da Democracia-Cristã e, mais tarde, o Mapu, defenderam com ardor o projeto de democratizar a propriedade da terra. A CEPAL e a FAO nos deram subsídios científicos e técnicos para levar adiante essa bandeira que, naturalmente, inquietava a direita.
AB – Quais foram os objetivos fundamentais da Reforma Agrária dos anos 60 aos 70?
JC – As diretrizes eram as seguintes. De início, impedir que a posse da terra continuasse a concentrar-se nas mãos dos grandes proprietários. Para tanto, o projeto de lei (já aprovado no governo Frei) limitava a superfície das propriedades. No vale central, perto de Santiago, a área máxima que um fazendeiro poderia possuir, era a de 80 hectares irrigados. Nas regiões onde os solos são de menor qualidade, o limite poderia avançar até 200 ou 300 hectares, ou até mais. Só as terras que excedessem esse limite podiam ser adquiridas pelo Estado e redistribuídas aos trabalhadores rurais. A limitação apresentava muitas vantagens. Primeiro, estimulava os que conservavam a sua parte de terras a cultivá-las mais intensamente; antes da reforma, os latifundiários preferiam reinvestir o seu capital na compra de outras terras, que deixavam incultas, mas cuja posse lhes acrescia prestígio e lhes facultava mais vantagens financeiras, visto que a propriedade era sempre uma garantia contra a inflação. Além disso, o grande terrateniente podia obter créditos bancários e pagava pouco imposto. E, sobretudo, continuava a explorar a mão-de-obra barata dos camponeses sem terra.
A partir da vigência da nova lei agrária, os latifundiários já não dispunham do direito de acumular terras e foram levados a investir em reformador das estruturas fundiárias, na prática freava os avanços do INDAP – que me cabia dirigir. De um lado, sustentávamos a organização sindical dos trabalhadores rurais e fornecíamos apoio técnico e financeiro aos pequenos agricultores; mas, de outro lado, à medida que o movimento camponês cresceu, em torno de 65/66, o governo Frei praticamente congelava a redistribuição das terras. Esse recuo do poder democrata-cristão tornava insustentável a nossa proposta de uma reforma para valer. Cedo ou tarde, o conflito deveria estalar. Em 1969 saí do partido, acompanhado de todos os que divergiam das táticas conservadoras do governo. Fundamos então o Mapu, de que fui secretário geral, e apoiamos a candidatura de Allende, que se elegeu em setembro de 1970. No ano seguinte, criamos a Esquerda Cristã, que, preservando a sua identidade socialista (mas não – leninista), participou da União Popular. A partir desse momento, partilhamos o nosso destino político com as forças de esquerda latino-americanas...
AB – Voltemos, agora, ao seu trabalho em favor da reforma agrária que começou no governo Frei e se intensificou sob a gestão de Allende.
JC – Gostaria de começar o relato por uma recordação de infância. Meu pai era médico e, muitas vezes, me levava a passar férias nas fundas para onde íamos a convite de seus clientes. Minha paixão era cavalgar pelos campos. Eu vivia lado a lado com os camponeses, e foi assim que comecei a me interessar pelo seu destino. As condições miseráveis em que eles viviam, em contraste com a vida opulenta dos fazendeiros, motivaram, mais tarde, meus estudos de Agronomia. Eu desejava dispor de meios técnicos para mudar aquela situação de pobreza.
Em 1970 pelo menos 25% da população chilena ainda vivia no campo. Em números absolutos, eram quase três milhões de camponeses. A concentração da propriedade rural sempre foi grande, entre nós. Havia um alto número de camponeses sem terra que precisavam trabalhar como assalariados. Enfim, havia minifundiários que não conseguiam produzir o bastante para garantir a própria subsistência: daí a massa de empregados provisórios e de meeiros. O par latifúndio-minifúndio, nessas condições, é a raiz da pobreza do nosso camponês. Um bens de equipamento, em máquinas, em gado, o que favoreceu a produção, naturalmente.
Quanto às terras redistribuídas, puderam constituir a base de uma agricultura camponesa, capaz de suprir as necessidades alimentares dos seus novos donos e integrá-las em um mercado interno mais dinâmico. Democratizando a propriedade estávamos, ao mesmo tempo, incentivando a produção de alimentos.
A lei previa diferentes fórmulas de distribuir aos camponeses as terras expropriadas. Durante um período de transição, que deveria durar de três a cinco anos, as terras eram entregues a uma sociedade coletiva de exploração chamadaasentamiento.Além da terra, o Estado contribuía com o capital, ao passo que os camponeses que as ocupassem entravam com o seu trabalho. Esse lapso de tempo permitia que se preparassem os planos de divisão da terra e dava oportunidades aos camponeses para se informarem sobre as suas novas responsabilidades. Eles logo descobriram as vantagens de optar por um sistema cooperativo de trabalho. Ao cabo desse tempo, as terras deveriam ser atribuídas aos seus moradores com direito à posse definitiva.
Eram três as possibilidades de atribuir terras: (a) sob a forma de unidades familiares, com uma dimensão suficiente para ocupar a força-de-trabalho do camponês e da sua família, assegurando-lhes uma renda conveniente. Essas unidades familiares não eram divisíveis por herança, medida necessária para evitar a reconstituição do minifúndio miserável; (b) sob a forma decooperativas de produção, constituída pelo conjunto dos trabalhadores que morassem na fazenda; (c) por um sistema misto:uma parte da terra era alocada à cooperativa dos camponeses; a outra era partilhada entre as diversas famílias.
A lei previa também que, em certos casos, terras de grande valor poderiam ser conservadas pelo Estado (fazendas públicas), mas, de todo modo, os camponeses participariam da gestão e dos benefícios da exploração.
Enfim, a lei regulava o uso público das águas, medida essencial para a região média do Chile, onde só chove no inverno, e onde a agricultura não sobrevive sem irrigação. Irrigado, o Chile central tornou-se a região agrícola mais produtiva do país; até então a irrigação era mal repartida, pois só alguns fazendeiros se beneficiavam dela. A legislação nova dava ao governo a faculdade de redistribuir as águas de imigração em proveito de todos agricultores.
Texto original Jacques - Chonchol: O Chile ontem e hoje
Postado por
Grácia Lopes Lima
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03:34
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